Algumas noções sobre o liberalismo nos são bastante conhecidas porque temos
vivenciado intensamente na vida cotidiana seus efeitos econômicos e sociais,
principalmente a partir da década de 1980. Nessa época o mercado capitalista
passa por um profundo rearranjo visualizado nos processos de globalização e
regionalização dos mercados, com concentração cada vez maior do capital,
orientada pela internacionalização da economia, sob a hegemonia do capital
financeiro (Silva, 2007).
No Brasil, (e em todo o mundo capitalista) essa nova articulação
produziu um expressivo aumento e disseminação da pobreza e da exclusão social,
a precarização do trabalho, a eclosão do desemprego estrutural e o retraimento
dos direitos sociais outorgados pela recente (na época) Constituição Federal de
1988 (Ivo, 2008). Esta nova fase do capitalismo, como era de se esperar,
incrementou as pressões sobre a produção e o consumo, reconfigurando a cultura,
promovendo efeitos destrutivos sobre o meio ambiente e avançando ferozmente em
territórios, cujos recursos naturais, como a água e vários outros minérios,
ainda são detectados com facilidade.
Como versão sofisticada do capitalismo, subjaz sob a lógica liberal o
principio da constante ampliação do lucro. De fato, segundo diversos
estudiosos, a racionalidade capitalista encontra sua expressão maior na
expansão econômica, de forma que a estagnação pode ser considerada um indício
de que o sistema está se aproximando do seu fim (Wallerstein, 2004). Numa
perspectiva filosófica, o liberalismo caracteriza-se pela noção do individuo
como ser movido por paixões e interesses, sendo que a liberdade, a propriedade
e a igualdade constituem valores absolutos. Nesse sentido, a função primordial
do Estado consiste em garantir o conjunto das liberdades individuais,
possibilitando o homem viver, desimpedido, suas relações de troca e poder
(Duriguetto, 2007). Assim, segundo a lógica liberal, a pobreza é resultado do
mau desempenho individual de cada pessoa à medida que ela é incapaz de se
adaptar à realidade recorrendo às suas habilidades naturais.
Longe da regulação do Estado, a sociedade civil aparece para os
liberais como o reino das liberdades individuais, onde os homens interagem
entre si e com o seu meio. Além disso, num contexto de capitalismo liberal, o
mercado surge como o espaço por excelência das relações sociais,
potencializando os indivíduos nas suas intervenções sobre os outros, sobre a
natureza e sobre o seu contexto cultural, permitindo a consolidação e a
ampliação de poderes e ganhos econômicos. Num mercado globalizado, a região
amazônica, detentora de grandes reservas de recursos naturais, destaca-se como
real possibilidade de ampliação de lucros, em uma época em que a descoberta de
tais recursos torna-se cada vez mais difícil ao redor do planeta.
Elementos essenciais à vida como a água transformam-se em negócios
extremamente lucrativos. A privatização de serviços básicos, como o tratamento
e a distribuição dos recursos hídricos, é viabilizada sob o falso argumento da
ineficiência do Estado. Aproveitando-se de populações pouco informadas e
desmobilizadas, empresas particulares multiplicam seus ganhos em meio às
irregularidades, aos serviços precários e superfaturados. Tudo isso sob a
proteção de um Estado corrupto e de uma cultura que faz da política uma forma
de angariar dinheiro e obter vantagens econômicas.
No reino do livre mercado nem os bens inalienáveis escapam à lógica
mercantilista. A água, com todo o seu valor simbólico e o seu caráter
imprescindível para a manutenção da vida, torna-se objeto de lucro e de
exploração entre os indivíduos. Recurso que deveria ser garantido a todos os
seres humanos sob pena de sua extinção é feito objeto de venda, sendo acessível
somente àqueles que podem comprar. Dessa forma, a vida, doada pela mãe-natureza
sem nenhuma distinção, torna-se monopólio de uma pequena classe de poderosos. O
Estado, outrora garantidor de direitos e proteção social para os cidadãos, na
sua versão liberal, se alia aos grandes capitalistas, transferindo-lhes suas
prerrogativas e abandonando as populações vulneráveis à lei do mercado para o
qual só tem vez e voz aquele que pode pagar. Lógica perversa que faz as pessoas
nascerem já subalternas e dependentes de empresas que trabalham constantemente
para aumentarem os seus lucros às custas dos pobres, destituindo-os de tudo o
que têm. Lógica liberal das Águas do Amazonas!
Escrito
por ocasião de uma visita à Ocupação Nova Vitória (Manaus), nos preparativos do
bairro para a vistoria dos serviços prestados pela empresa Águas do Amazonas,
investigada pela CPI da Água.
Sandoval A. Rocha, 11/04/2012
Bibliografia:
DURIGUETO, Maria Lúcia. Sociedade
Civil e Democracia. Um debate necessário. São Paulo: Cortez, 2007.
IVO, Anete Brito Leal. Viver
por um fio. Pobreza e Política
Social. Salvador: Annablume, 2008.
SILVA, Maria Ozanira Silva e; YAZBEK, Maria Carmelita; DI GIOVANNI,
Geraldo. A Politica Social Brasileira no
Século XXI. Prevalência dos
programas de transferência de renda. 3ª Edição. São Paulo: Cortez, 2007.
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